O despertar de tudo - Resenha crítica - David Graeber
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O despertar de tudo - resenha crítica

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História & Filosofia

Este microbook é uma resenha crítica da obra:  The Dawn of Everything: A New History of Humanity

Disponível para: Leitura online, leitura nos nossos aplicativos móveis para iPhone/Android e envio em PDF/EPUB/MOBI para o Amazon Kindle.

ISBN: 978-65-5782-618-8

Editora: Schwarcz

Resenha crítica

Uma nova história da humanidade

A história está errada. Os livros foram escritos com base em lições imprecisas de filósofos da modernidade. Existem dois principais: Rousseau e Hobbes. O primeiro achava que a humanidade é boa, se não for corrompida. O segundo, dizia que somos naturalmente egoístas.

Os historiadores erraram ao assumir que as duas visões eram parcialmente corretas. Novos pesquisadores começaram a entender que o progresso não é linear. A escravidão não foi uma unanimidade, por exemplo. Mas, aos poucos, ficou popular e lucrativa. Se tornou uma financiadora da opulência europeia por isso. A história convencional não mostra, mas muitos não concordavam.

Só que isso não fez a menor diferença. Uma das razões é o poder. Os reis o mantinham de três formas: violência, informação e carisma. A primeira deixava os súditos na linha. A segunda, ajudava a espalhar a propaganda de si. A terceira, inspirava os adeptos da monarquia. Um monarca aprende cedo que ser poderoso depende de parecer poderoso.

Rousseau e Hobbes não dialogam com os fatos

Rousseau e Hobbes achavam que a história era uma linha reta. Os rousseaunianos pensam que somos iguais e evoluímos com a agricultura. Os hobbesianos acham que somos egoístas e a violência é algo natural. Os cientistas sociais de hoje dizem que as duas histórias estão certas, em parte.

Só que os arqueólogos estão descobrindo que essas respostas são fracas. Os adeptos das duas visões acham que éramos primários e ficamos civilizados. Mas as evidências mostram que a história não é uma linha reta. Não existe divisão entre civilização e barbárie. O progresso é um mito.

A humanidade não avançou. Ela foi para frente, para trás, para o lado, parou. A metáfora de caminhar para frente é um erro. Não faz sentido pensar que somos melhores do que os que vieram antes de nós. Nossos ancestrais são complexos e dignos. É um erro pensar que inteligência é uma coisa nova.

A utopia da civilização

A civilização é uma utopia politicamente conveniente. Quem tinha o poder reduzia os povos originários a “selvagens”. Em 1690, o líder indígena Kandiaronk fez críticas públicas ao modelo europeu. Isso inaugurou a “crítica indígena”. A resposta dos colonizadores foi uma defesa da “civilidade europeia".

A perseguição religiosa da Europa usava como desculpa a tal civilização. Seria um mal necessário. A influência de Kandiaronk foi criticada na Revolução Francesa. Só que os indígenas da América do Norte tinham mais a dizer.

A Europa ficou nua. A crítica indígena rejeitou o patriarcado, a lei punitiva e a busca pelo luxo. Os iluministas aprenderam com os povos originários. Sua influência está nas suas ideias. A história em progresso linear erra ao definir a liberdade como um traço primitivo dos humanos que precisa ser corrigido pela civilização.

A dignidade dos pré-agrícolas

Quase 100% da existência humana não tem registros. Pelo menos, não escritos. A história é praticamente um detalhe. Mas sem essas fontes, não dá para saber muito. Tudo que conhecemos da maior parte do nosso passado pré-agrícola está nos registros arqueológicos. Do pouco que sabemos, a diversidade física e cultural merece destaque.

Só que não herdamos a hierarquia dos primatas. Por muito tempo, a humanidade não tinha uma ordem de líderes imutável. O antropólogo Claude Lévi-Strauss notou isso ao estudar os Nambiquara no Brasil. A organização do povo mudava de acordo com a agricultura ou o pastoreio. Nos Nambiquara, dois sistemas sociais atuam. Eles variam na estação chuvosa e na seca. 

As posições dos chefes são transitórias. Durante a colheita, os líderes são como estadistas que influenciam pelo exemplo. Na dificuldade, têm posturas autoritárias, com a posição dependendo da reputação. Dá para levantar algumas hipóteses com base nisso. Por exemplo, a de que os primeiros reis eram temporários.

O fim da liberdade

Nossos ancestrais levavam a liberdade a sério. Cultivavam três fundamentais. A de frequentar terras distantes, a de alternar entre a hierarquia social e a de desobedecer às autoridades. Só que os reis permanentes ocuparam o lugar dos líderes temporários. Isso começa com a ideia de propriedade. 

Os europeus diziam que os indígenas não eram donos da terra em que viviam, por exemplo. Para eles, era preciso trabalhar na terra para merecê-la. Os Nambiquara rejeitam essa noção de propriedade. Afinal, essa ideia sustenta uma estrutura de exclusão. O conceito europeu de sagrado gerou um efeito parecido. Diz sobre aquilo que não pode ser violado.

O sagrado e a propriedade são parecidos, porque mostram o que não se toca. Se você tem um carro em um país ocidental, ninguém no mundo inteiro pode entrar nele sem sua autorização, graças à lei do seu país. A exclusão criada por esses dois conceitos se alimenta do ideal de obediência inquestionável à autoridade.

Os anti-agrícolas

Os estudiosos não se importavam com os povos originários. Sua existência pré-agrícola era ignorada. A população de antes do paleolítico era vista só como um estágio. O destino é a sociedade atual, com as pessoas pagando impostos ao governante. No entanto, é um erro classificar os povos só como pré-agrícolas. Alguns são até anti-agrícolas.

O que significa dizer que sua sociedade surgiu em oposição às outras. É o caso dos indígenas da Califórnia. Se a população do Noroeste do pacífico era escravizadora, os californianos eram ascetas e cultivavam o desapego aos bens materiais. Alimentos básicos ocupavam o lugar da ostentação e escravizar não era uma hipótese. Sua escolha por rejeitar esse tipo de violência tem dimensões políticas.

As comunidades do Noroeste fizeram o contrário. A opulência da aristocracia era inviável sem a escravidão para financiá-la. Isso mostra como fomos convencidos de que o sistema social atual é o único possível. Nos acostumamos à rigidez, à hierarquia e à burocracia. Entender o passado torna possível iluminar o presente.

O mito da transição linear para a agricultura

Já passamos da metade deste microbook e os autores contam como a mudança para a agricultura não foi linear. Adotar propriedade privada não é regra. A redistribuição do campo era comum em algumas comunidades agrícolas. O que ainda é praticado na zona montanhosa da Escócia e nos países nórdicos, por exemplo.

Não existiu uma revolução. A transição agrícola demorou, com uma adoção irregular. Era inviável abandonar a caça por completo. Algumas sociedades neolíticas sofreram por depender de só uma fonte de nutrição. Foi preciso encontrar o entre caçar e cultivar. Aprender a domesticar o trigo foi uma tarefa lenta, de 3.000 anos.

Progredimos aos trancos e barrancos até a agricultura ficar popular, um trabalho que provavelmente teve as mulheres como protagonistas. Cultivar é uma tarefa difícil. O processo foi complicado e exigiu muito esforço humano. Da caça, saímos para o ato de limpar campos, tirar ervas daninhas e irrigar. A caça nunca foi realmente abandonada, no entanto.

Hierarquia é uma ideia nova

Reis eram incomuns na Mesopotâmia. Não existia monarquia. As tarefas eram coletivas, como na corveia francesa. O trabalho era obrigatório em projetos sazonais. Assembleias populares eram frequentes por isso. Uniam-se fenícios, hititas, filisteus e israelitas. A arqueologia da região sugere riqueza bem distribuída e diversidade étnica, com a administração das cidades debatida nas assembleias públicas.

Embora tenha surgido depois, Teotihuacan, uma cidade da Mesoamérica, tinha uma configuração parecida. Com mais de um milhão de pessoas, era um lugar socialmente rico. Não existiam reis ou chefes. Toda a população era vista como igual. Isso é visível nas artes. Os teotihuacanos eram retratados como pessoas do mesmo tamanho.

Sua organização sofisticada tornava impossível ver superioridade entre as pessoas. No entanto, as cidades montanhosas menores são diferentes. Nelas, é possível ver o começo de uma aristocracia. Uma elite guerreira já existia no Leste da Turquia. Os guerreiros lutavam por escravos e ignoravam traços de cidades próximas, como a escrita. 

Violência, informação e carisma

O Estado é o monopólio da força. Essa é a definição oficial. Max Weber a deu para os cientistas sociais. O que sobra para os arqueólogos é se perguntar como isso aconteceu. Os autores dizem que de três formas: violência, informação e carisma. Os olmecas, a cultura mãe mesoamericana, dependia de líderes carismáticos.

A população de Chavín de Huántar, anterior aos incas, liderava por meio do conhecimento esotérico. No entanto, faltava algo para essas culturas serem Estados. O ingrediente fundamental é a violência. No Antigo Egito, alguns súditos eram mortos para que fossem enterrados com o rei. 

Violência é um ingrediente na receita para fabricar um rei. Os povos começaram a ter a cara de burocracia em aldeias neolíticas, quando povos como os de Tell Sabi Abyad ensaiaram o esboço de uma administração central. O Estado é fruto de uma necessidade de alocar recursos e da união recente das três formas de dominação. Por isso, não é inevitável. Talvez também não seja permanente.

O Estado não é o ponto final

A crítica indígena não é aleatória. Surgiu por séculos de conflito entre os povos originários da América. Os moradores de Cahokia, uma cidade do Norte do México, simplesmente abandonaram a cidade durante a pré-história americana. A população urbana se dissolveu. Não sabemos a razão, mas isso prova um ponto. O de que a formação do Estado não é inevitável.

A evolução não é uma linha reta com a criação do Estado como um ponto final. Se uma sociedade começa a criar uma cidade e formar uma burocracia, os exemplos pré-históricos mostram que nada a impede de seguir a direção contrária. A administração pode se desfazer.

Os indígenas têm uma sensibilidade política independente e antiautoritária. Sua crítica foi um motor para o iluminismo. Se o desenvolvimento social não é uma linha reta, o político também não é. Podemos dar ré, andar de lado e, simplesmente, não criar o estado que a civilização ocidental quer.

A desigualdade tem uma origem

Há duas ideias populares sobre desigualdade. A primeira beira o bíblico. Nela, éramos um povo bom, que perdeu o paraíso por nossos pecados. A segunda, é inversa a isso. Diz que a desigualdade não tem uma origem específica, porque, para começo de conversa, somos todos maus. Mas essa teoria tem um furo.

Ela não explica a razão pela qual a civilização não se disseminou por conta. Nos últimos quinhentos anos, os europeus precisaram empurrá-la goela abaixo. Se o modelo é tão bom, por que não foi adotado espontaneamente? Ou por que os próprios tradicionalistas europeus tinham tantas preocupações com seu fracasso?

O Iluminismo confundiu as coisas. As sociedades que o antecederam eram vistas como primárias. Os antropólogos tiveram um papel importante ao descrever as populações como a-históricas. Assim, ninguém é inferior ou atrasado. Cada um vive sua cultura de forma relativa. A própria concepção de tempo que usamos é uma invenção recente, da qual nem todas as populações compartilham.

O despertar de tudo

A história está de ponta cabeça. O conceito de igualdade não faz sentido porque nada indica que os povos pré-históricos eram desiguais. O mesmo vale para a inevitabilidade do Estado; para a ideia de que a burocracia é a consequência natural da agricultura; para a abolição da escravidão várias vezes durante a história.

O passado pode revelar pistas de um novo futuro. Sociedades comunitárias, conselhos populares, ausência de hierarquia, cuidado da terra sem exploração, sociedades não violentas, ausência de um Estado perpetuado com violência. As lições estão na nossa história e na nossa arqueologia. 

Talvez sabermos que poderíamos viver de forma radicalmente diferente faz com que a narrativa de expulsão do paraíso seja até menos assustadora. Não sabíamos disso porque tudo o que conhecemos sobre história e arqueologia estava coberto com o tecido do eurocentrismo. Mas deixar o passado nu é o primeiro passo para a lucidez.

Notas finais

A função da história é usar o passado para entender o presente. Só que os arqueólogos e historiadores estão ajudando a desmontar alguns mitos que nos ajudam a construir um futuro melhor. Não precisamos nos apegar ao Estado, às hierarquias e à violência porque agora sabemos que não são inevitáveis.

Dica do 12min

David Graeber e David Wengrow fizeram uma crítica à arqueologia evolucionista e mostraram uma alternativa à história convencional. Yuval Noah Harari tem uma visão diferente. Você pode conhecê-la no microbook Sapiens, disponível no 12 min.

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Quem escreveu o livro?

David Rolfe Graeber (1961-2020) é um antropólogo norte-americano conhecido por suas contribuições à antropologia da política, da economia e também por seu esforço na definição de uma “antropologia anarquista”. Iniciando sua trajetória acadêmica a partir de... (Leia mais)

David Wengrow é um arqueólogo britânico e professor de Arqueologia Comparada no Instituto de Arqueologia da University College London. Ele é co-autor... (Leia mais)

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